A condição humana/Hannah Arendt
Os homens são seres condicionados, porque tudo aquilo com que eles entram em contato se torna imediatamente uma condição de sua existência, assim a pluralidade humana é a condição da ação humana porque somos todos iguais, isto é, humanos, de um modo tal que ninguém jamais é igual a qualquer outro que viveu, vive ou viverá. Por isso, para Hannah Arendt a vita activa se desdobra em três etapas: a) trabalho, o processo biológico do corpo humana onde sua condição é a vida; b) obra, a não naturalidade ou a mundanidade; e por fim, c) ação, ocorre diretamente entre os homens onde se visualiza a pluralidade.
A existência humana se dá numa interdependência entre nascimento e morte, natalidade e mortalidade, onde a ação é a atividade política por excelência, sendo assim o impacto da realidade do mundo sobre a existência humana é sentida e recebida como força condicionante. A vida humana sempre exige alguma forma de organização política, por isso, a ação só se dá na constante presença de outros, fato esse que o homem busca incessantemente a imortalidade, porque significa a continuidade no tempo, vida sem morte, mas exemplo disso é a queda do Império Romano que demonstra claramente que nenhuma obra de mãos mortais pode ser imortal.
A pergunta que nos resta é o homem é um animal social ou político? Em contrapartida, Arendt ressalta a contemplação como uma faculdade humana, como equilibrar tais estados de vida? Por exemplo, nossa vida é essencialmente comunitária, e até o eremita tem que conviver com a presença de outros seres humanos. A comunidade natural do lar, por exemplo, nasce da necessidade e ela governa todas as atividades, temos então a necessidade versus a liberdade, natural versus política, no entanto, a liberdade da sociedade, que se situa no domínio do social, e a força da violência se tornam monopólio do governo – tornando assim esfera exclusivamente política a liberdade.
A violência é o ato pré-político de liberar-se da necessidade da vida para conquistar a liberdade no mundo, assim ser livre significava ao mesmo tempo não estar sujeito às necessidades da vida nem ao comando de outro e também não comandar. A liberdade em Arendt se dá na relação com o outro, e se manifesta no domínio público e no serviço, tal domínio reúne-nos na companhia uns dos outros e, contudo evita que caiamos uns sobre os outros por assim dizer, perdemos de certa maneira o poder de nos congregar e de nos relacionarmos entre si.
Infelizmente, o dinheiro é o denominador comum para a satisfação de todas as necessidades, pois o mundo comum acaba quando é visto somente sob um aspecto e só se lhe permite apresentar-se em uma única perspectiva. Dentro do pressuposto de uma ética universal, a filosofia arendtiana defende uma responsabilidade política, já que a pobreza e as misérias humanas foçam o homem livre a agir como escravo, assim a única propriedade que podemos confiar é o nosso talento e a nossa força de trabalho.
Deus é a única testemunha imaginável das boas obras, que não aniquila a existência humana, por isso, ser bom – não como metáfora e sim um autêntico modo de vida, já que a bondade é uma qualidade não humana e sim sobre-humana, torna-se de grande relevância para a política e a convivência comunitária.
O homem contemporâneo, prisioneiro das suas necessidades, sem motivações, carente de uma consciência moral e de capacidade política, é convidado para uma ética da responsabilidade pessoal, se a liberdade e a política se confundem no pensamento arendtiano, a questão ética é reforçada por meio dos pensamentos, onde as relações com os outros ganham significado, já que não implica regras de conduta pré-determinadas por valores imutáveis e que estão fora do indivíduo, no entanto, sua ética se dá no íntimo do sujeito na qual ele mesmo produz e avalia seus próprios princípios através da livre-escolha, ao qual seu contexto de inserção interfere nas suas afirmações e negações.
A filosofia de Hannah Arendt sofre influência de Immanuel Kant, assim a proposta de seu pensamento político é reconhecer que todo homem tem direito a ter direitos, onde o termo de humanidade assume uma dimensão ontológica, e nisso se dá a reconstrução dos direitos humanos na perspectiva duma ética universal, onde cada indivíduo por ser homem ou mulher já deve intrinsicamente ser garantido seus direitos por pertencer à humanidade. Pode ser ilógico ou inconcebível tal afirmação, no entanto, diante dos horrores como o totalitarismo vivido por Arendt, isso demonstra sua preocupação em desenvolver uma filosofia que procura resgatar a própria dimensão humana da humanidade.
Para ela construir e garantir um ambiente geral ou um espaço político internacional que respeite a humanidade de todos é um sonho a ser alcançado, já para outros uma utopia, diante da descartabilidade dos seres vivos e do utilitarismo sistemático prevalecendo à filosofia do homo faber que gera uma completa ausência de significado, onde o comércio é a alma da sociedade a filosofia desenvolvida por Hannah Arendt se torna muito atual e que nos faz repensar qual trilho o século XXI tem percorrido e quais serão as consequências de tais escolhas. Por isso, sua filosofia destaca a pluralidade da condição humana não como problema e sim como solução para diversos erros cometidos onde a compreensão do mundo e das atividades humanas se faz necessária, principalmente na capacidade de agir em conjunto diante da liberdade de participação e da ética ligada com a responsabilidade na defesa da dignidade humana.
Desta forma, a ação é a atividade humana que corresponde à condição da pluralidade, enquanto cada indivíduo é portador de uma singularidade única – iguais enquanto humanos, mas radicalmente distintos e irrepetíveis, essa sim é a chave para resolver inúmeros problemas entre povos e nações, no entanto, é certo dizer que Hannah Arendt defende uma mudança de mentalidade para que os homens tão iguais e diferentes ao mesmo tempo, possa a partir de uma identidade comum entre eles ser a possibilidade da convivência fraterna e solidária entre os indivíduos que tornam a humanidade tão bela e diversificada, pois a beleza da humanidade é a sua diversidade que ao mesmo tempo nos torna um mundo comum. A liberdade de espontaneidade é parte inseparável da condição humana, o homem só respeita a dignidade do outro se ele mesmo se reconhece como sujeito que merece e necessita valorizar no outro algo que é comum a todos os seres humanos e que pode ser utilizado para edificar toda a civilização, dando sentido a essa ética universal descrita e defendida na filosofia política de Hannah Arendt.
Por fim, concluímos que falar de política e liberdade no pensamento de Arendt é definir a mesma coisa, seu contexto foi de horror por ser judia e viver o totalitarismo e suas atrocidades, no entanto, sua ética universal se dá no íntimo de cada ser humano e a consequência disso são suas escolhas, ações e mudança de mentalidade que podem de alguma maneira, alterar o percurso da humanidade e resgatar a dignidade humana que quotidianamente sofrem atentados e que de certa maneira, agridem a própria condição do homem e a sua convivência enquanto sociedade organizada econômica e politicamente falando, sem dizer que o homem só se torna mais humano quando reconhece e respeita a dignidade do outro, passando por uma consciência ética já internalizada ou em processo de formação.
Autoria:
ARENDT, Hannah, 1906-1975. A condição humana/Hannah Arendt; tradução: Roberto Raposo, revisão técnica: Adriano Correia. – 11.ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2014.