Artigo: Medo e desejo seriam a origem de todo sofrimento?
De acordo com a filosofia budista, o medo e o desejo são duas das principais causas do sofrimento humano, a serem transmutadas através da autocompreensão. Seria essa, também, a visão de Freud?
Em primeiro lugar, é importante compreender que a base de ambos são diferentes. Devido às inúmeras interpretações que surgiram sobre os escritos de Freud ao longo dos anos, há uma certa confusão entre o que é instinto e o que é pulsão. Nesta fala, por exemplo, podemos colocar o medo tendo como base o instinto, e o desejo tendo como base, uma pulsão. Além disso, a pulsão pode ter uma orientação para a auto conservação, sexual, para a vida ou para a morte.
Para entender melhor, podemos dizer que o instinto é determinado pelo fator hereditário e faz parte de todos os seres vivos, não somente dos humanos. É o instinto que garante que os seres manterão o ciclo da vida através, por exemplo, de sua alimentação e busca por hidratação.
Os seres que não realizam o processo de racionalização como os humanos, buscará de qualquer forma se alimentar – seja um animal selvagem em busca da caça, seja uma planta através da fotossíntese.
É como se cada ser tivesse uma inexplicável força que o direciona para a ação, disparando o movimento da ação, porém, sem determinar exatamente qual é a ação e qual é a intensidade com a qual a ação precisa ser realizada.
Agora, quando falamos de pulsão, podemos dizer que é um impulso direcionado para um representante, que pode ser um objeto de amor, uma ideia ou uma condição.Há uma força que movimento em direção à realização do impulso. A pulsão nasce de um desejo inconsciente, ou seja, do conteúdo represado em nossa esfera mental inascessível, sendo, por esse motivo, tão difícil de identicá-los e compreendê-los.
Expandindo um pouco mais, o instinto se traduz pela necessidade de uma ação, porém sem determinar qual é essa ação. A pulsão por sua vez, inúmeras vezes, se sobrepõe sobre o instinto, quando torna a realização de uma necessidade, prazerosa. Podemos dizer que em um primeiro momento, a pessoa age por instinto, mas dependendo de como esse instinto é satisfeito, passa a ser então desejado como a satisfação com prazer para além do atender a uma necessidade.
Talvez por esse motivo, a sexualidade estudada por Freud enquanto libido gerou tanta controvérsia, inclusive com estudiosos próximos, como Jung. A visão de Freud não restringiu a sexualidade aos órgãos genitais, e sim, a um complexo sistema psicossexual que se desenvolve ao longo da vida através dos mecanismos de prazer e das pulsões.
Vale ressalvar que as pulsões trazem aspectos mentais que não estão presentes no instinto. As pulsões são dotadas de forte carga energética, que pede para ser direcionada de alguma forma. A repressão dessa energia psíquica faz com que, na verdade, ganhe força, podendo eclodir de forma desequilibrada. O instinto faz parte do mecanismo intrínseco a todo ser vivo.
Por exemplo, o livro A vida secreta das árvores, que fala sobre a sobrevivência dos ecossistemas das florestas, conta que as plantas se comunicam através de suas raízes, no subsolo, e que quando uma árvore do bosque está doente, as outras se mobilizam para enviar nutrientes de forma a buscar ajudar a árvore doente a se recuperar. Este é um mecanismo instintivo que garante a sobrevivência das espécies, sem o acréscimo de um aspecto mental ou sensação de prazer. Instinto!
Retomando a questão budista, percebe-se que ambos são importantes: o medo e o desejo. É o medo que nos faz correr quando um leão aparece em nossa frente, e é o desejo que nos coloca em movimento para buscar experiências e colocar em movimento a energia do impulso natural que todos carregamos dentro de nós.
O que na realidade a fisolofia budista defende não é a remoção do medo e do desejo, pois qualquer repressão neste sentido, terminaria por gerar uma força ainda mais potente e por vezes, desastrosa. A questão é desenvolver um estado de autocompreensão, de se perceber profundamente enquanto ser humano, reconhecendo os próprios medos e desejos com o intuito de equilibrá-los.
De acordo com o livro Aberto ao desejo, de Mark Epstein, o desejo ao qual se refere Buda como fonte de sofrimento tem muito mais a ver com o apego, que seria o medo de perder a experiência prazerosa que a pessoa teve através da realização de sua pulsão.
Dessa forma, entende-se que o desejo é fundamental para uma experiência repleta de vitalidade, sendo muito saudável quando compreendido e bem direcionado.
Assim como os escritos de Freud, os escritos de Buda também sofreram interpretações distorcidas ao longo dos anos, especialmente por conta da repressão religiosa.
No fundo, ambos entendiam que medo e desejo, instinto e pulsão, são necessários para o desenvolvimento humano – a diferença está na forma como essas esferas passam pelo filtro da percepção individual em direção à realização na vida prática.